domingo, 6 de abril de 2008

Hibridismo
Categorias em xeque
As possíveis interpretações sobre a noção de hibridismo na arte contemporânea são abordadas em aspectos estéticos, científicos e sociológicos. As impropriedades categóricas de trabalhos híbridos são um fato consumado. Texto de Charles Narloch.


Um artista de hoje não tem mais que dizer "eu sou um pintor" ou "um poeta" ou "um performer" ou "um dançarino". Ele é simplesmente "um artista". Assim, todas as instâncias da vida se abrirão a ele. (Allan Kaprow, 1958)
No ímpeto de tentar entender sua vida e seu lugar, o homem precisou organizar suas idéias, classificar seus conhecimentos, separar suas ciências e suas habilidades de expressão. Cada vez que elabora esse exercício, velhos conceitos são postos em xeque, surgindo novas maneiras de se referir às coisas, separar os hábitos, organizar os pensamentos.
Nas artes não é diferente. Durante diferentes períodos da história, o conceito de arte teve conotações bastante diferentes da utilizada atualmente no discurso estético. Inúmeros preceitos foram superados, fragmentados e freqüentemente reordenados sob múltiplas formas de expressão, estabelecendo infinitas poéticas que transcendem modalidades e categorias, buscando o apoio na interdisciplinaridade e a fundamentação em outras ciências. E o conceito biológico de hibridismo - quem diria - é hoje utilizado para a compreensão de processos artísticos.
Entre os diferentes e múltiplos sentidos permitidos, pode-se afirmar que o hibridismo nas artes é a impossibilidade de conceituar uma criação artística como pertencente a uma única vertente, categoria ou cultura, decorrente do ilimitado experimentalismo da arte contemporânea. Pensando no que comumente se estabelece como artes plásticas, não há mais limites entre pintura e desenho, ação e performance, objeto e escultura, instalação e site-specific work. As criações desse segmento são invadidas ou invadem o cinema, o teatro, a dança, a música, o espaço urbano, o ciberespaço, o design, os meios de comunicação, a política, as relações sociais ou a biotecnologia, sem querer ocupar o espaço conquistado por eles. Por outro lado, torna-se cada vez mais difícil, também, estabelecer diferenças entre processos artísticos que caracterizem um lugar ou uma cultura específica.
Discorrendo sobre o estado híbrido na contemporaneidade, Herom Vargas estabelece que as características de um produto cultural híbrido são difíceis de abarcar, a não ser levando em conta sua instável complexidade.
O objeto cultural híbrido implica idéias de fratura, deslocamento e transitividade. Não é resultado de um aspecto, nem pode ser reduzido à unidade, mas mostra-se por várias facetas, cada uma delas concebida por fontes distintas e pouco delineadas, pois são também fruto de misturas. Por isso, o híbrido questiona as essências - substâncias com funções normalmente legitimadoras que se confundem com conteúdos fundamentais de origem estabelecendo a construção de “identidade” (Vargas, 2004).
Hibridizando modalidades e categorias artísticas e fazendo uso de novos materiais e de tecnologias eletrônicas em desenvolvimento - que permitem novas manipulações de dados, imagens e sons - os artistas atuais reavivam preocupações e impressões particulares ou coletivas (auto-referenciais ou não) sobre a própria arte ou sobre o mundo em que vivem. Cada qual com sua cultura e com sua forma de expressão contemporânea, sem apelar para o nacionalismo, os artistas contemporâneos tornam universais suas manifestações até então regionais.
Sobre a impossibilidade de definição entre modalidades artísticas, já em 1965 o artista Eduardo Paolozzi, em entrevista concedida ao artista Richard Hamilton, declarava sua intenção proposital de valorizar os “entremeios”.
Bem, acho que talvez se poderia atingir um objetivo final, que é uma aproximação ainda maior entre a pintura e a escultura. Poderíamos pintar a própria escultura (...) Depois de preparada a tela, certos ingredientes geométricos, como as variações sobre o quadrado ou a curva, a faixa, o círculo, poderiam ser aplicados pelo processo de transferência para os sólidos geométricos da escultura, de modo a termos a geometria em dois níveis. (...) Acho que o melhor da escultura moderna tem se preocupado esporadicamente com a idéia da escultura pintada, aproximando-se do ponto em que não se pode mais distinguir entre pintura e escultura, em que as duas se confundem de maneira original (Hamilton, 1965).
Para o teórico Thierry de Duve, com o pós-modernismo os artistas deixaram de ter um compromisso estético com a especificidade e pureza do meio de expressão. O conceito de meio, que estabelecia categorizações específicas nas artes visuais foi sustentado até o final da década de 1960. Cita o autor:
Por volta de 1970, Clement Greenberg e Michel Fried foram os últimos críticos de arte a sustentar a idéia de que nenhuma arte significativa poderia ser realizada se se situasse no espaço entre seus meios específicos e de que, se algo não pudesse ser considerado pintura nem escultura, então não poderia ser arte. Contra eles, uma geração inteira de artistas conceituais baseava-se em Marcel Duchamp para manter a arte situada no conceito, desmaterializada, livre de todos os meios, sobretudo livre da pintura (Duve, 1994).
O crítico Nicolas Bourriaud considera que o artista na atualidade, não sendo mais um criador, é um intruso em todos os outros campos, selecionando signos, explorando campos de produção, manipulando-os e construindo ligações entre eles. Como um avião furtivo, pode ser imperceptível ao radar do espetáculo, mas é extremamente eficaz ao apontar sempre para as situações mais críticas. Bourriaud considera que o artista contemporâneo, como um diretor de cinema, faz o casting para suas criações, tratando suas exposições como filmes sem câmera.
O artista contemporâneo habita todas as formas de arte. O problema não é produzir novas formas, mas inventar dispositivos de “habitat”. Habitar formas de arte já historiadas, reativando-as, mas também habitar outros campos culturais. É exatamente o que se passa na arte dos anos 2000: o artista é permanentemente um intruso em outros campos. Marie-Ange Guillerminot produz um vestido que poderia ser comercializado; Carsten Höller inventa uma droga euforizante; Fabrice Hybert monta uma empresa. Não é mais criar, mas surfar sobre as estruturas existentes. “Interdisciplinaridade” é, certamente, um termo freqüente na arte contemporânea: eu pessoalmente não creio que ainda exista, neste nível de criação, algo que possamos chamar de disciplinas. Existem apenas campos de signos, de produção, que os artistas exploram de ponta a ponta. Como conseqüência, o artista hoje, de Maurizio Cattelan a Alain Bublex, de Gabriel Orozco a Jorge Pardo, é uma espécie de “semionauta”: um inventor de trajetórias entre os signos. Ao mesmo tempo, esse “squat” é também um refúgio: a arte tornou-se hoje um tipo de abrigo geral para todos os projetos que não se ajustam a uma lógica de produtividade ou de eficácia imediata para a indústria e para a sociedade de consumo (Borriaud, 2002).
A desmaterialização da arte, provocada por esses processos híbridos de criação artística contemporânea, aliada aos novos hábitos de moradia e comportamento urbano, fez ainda ruir outro conceito secular, inerente ao fazer artístico: o mito do ateliê. O artista contemporâneo, salvo raríssimas exceções, não dispõe mais de um grande estúdio de trabalho, por vários motivos. Sobre esse comportamento, considera Bourriaud:
O ateliê perdeu sua função inicial: ser “o” lugar de fabricação de imagens. Como resultado, o artista se desloca, vai para onde as imagens são feitas, insere-se na cadeia econômica, tenta interceptá-las. O ateliê, portanto, não é mais o local privilegiado da criação, ele é apenas o lugar onde se centralizam as imagens coletadas por toda parte. Além disso, um ateliê é onde a matéria-prima é manipulada. Há um século, encontraríamos ali essencialmente potes de tinta ou argila; hoje, ele pode conter imagens de revista, televisão, situações sociais, carros, qualquer coisa. As matérias-primas da arte contemporânea são tão diversificadas, que o tamanho do ateliê varia segundo as práticas e o projeto artístico. (...) Três quartos dos artistas trabalham em casa, em um pequeno espaço que se transformou em ateliê. É uma coisa tola, mas que tem relação com a crise imobiliária: não é mais possível ter ateliês imensos, e seus tamanhos se estreitam com a flutuação dos aluguéis (Bourriaud, 2002).
Para Lúcia Santaella, o hibridismo é um traço dominante dos meios de comunicação de massa, que influencia e se deixa influenciar pelos meios de produção artística.
Por exemplo, o cinema mistura som, imagem, diálogos e figurinos. Isso leva à facilitação da comunicação ao se reforçar o significado através de uma relação intersemiótica. As “belas artes”, ou seja, a pintura, a escultura e a música, foram se transformando e perdendo seu caráter de pureza, ao incorporarem máquinas reprodutoras de linguagem e ao utilizar dispositivos tecnológicos de produção. Esse uso em comum dos meios de produção entre os meios de comunicação e os meios artísticos deve-se em grande medida à apropriação pelos indivíduos dos dispositivos tecnológicos da cultura das mídias, bastante diferente da lógica da comunicação de massa. O acesso facilitado a esses equipamentos deu origem à novas formas de arte tecnológica, inaugurando uma nova cepa nas artes, as quais, através do experimentalismo, foram moldando um novo olhar artístico, mais identificado com a contemporaneidade (Santaella, 2005).
Percebe-se que o conceito recente de hibridismo nas artes visuais é atualmente discutido sob três vertentes diferentes - aqui pretensiosamente propostas - que podem ser consideradas individualmente ou em conjunto:
1. Hibridismo estético, com enfoque na interdisciplinaridade de meios e linguagens artísticas, não somente entre as artes visuais, mas também nas suas relações com a literatura, o teatro, a dança e a música;
2. Hibridismo científico, com enfoque na interdisciplinaridade entre ciência e arte, na utilização de recursos eletrônicos, físicos, químicos, matemáticos ou biotecnológicos, a serviço da criação artística;
3. Hibridismo sociológico, como interferência da globalização e miscigenação de diferentes culturas em questões sociais e políticas universais, utilizadas como temas centrais de criações artísticas.
Neste ensaio, nos limitaremos a iniciar a discussão sobre o hibridismo sociológico. Sobre essa questão, Hans Belting analisa os impactos de uma descontextualização da arte produzida pelos artistas do dito “terceiro mundo”.
Chamei atenção aqui para o tema da descontextualização, a respeito do qual atualmente há muita discussão. Descontextualização significa que os artistas do terceiro mundo estão sendo alienados de seu próprio contexto quando nós os exibimos. Mas seria noção por demais idealista simplesmente pedir-lhes que trouxessem consigo seu próprio contexto para ser apresentado em um enclave improvisado. Nós nem sequer sabemos se eles ainda o têm. Poderíamos simplesmente presumir que esses artistas já produzem para o mercado ocidental - apesar de nós mesmos duvidarmos de que esse mercado seja tão viável, tão capaz de se prevenir de crises e tão inegavelmente legítimo quanto as culturas estrangeiras parecem crer (Belting, 2001).
Ainda pensando no hibridismo sociológico, de caráter político e urbano, Ricardo Rosas discorre sobre as ações e intervenções urbanas contextualizadas, que no Brasil introduzem inflexões poéticas, questionamentos sexuais, sociais, políticos ou estéticos na arena pública. Para o autor, essas manifestações híbridas oferecem o que faltava na dita “arte pública”, ou seja, espontaneidade, diálogo com o local, quebra do protocolo “sério” da arte convencional, participação do público, temporalidade volátil, ênfase nas sensações e interpretação e não na “monumentalidade”. Conscientes ou não destes detalhes, os artistas e coletivos da intervenção urbana transgrediam (e continuam a transgredir) códigos de urbanidade, relações usuais com o espaço urbano, clichês comportamentais, introduzindo igualmente ações e interferências absurdas ou surreais.
Paralela à proliferação cada vez maior de novos coletivos, a atitude politizada se dá no trabalho com as comunidades desfavorecidas no espaço urbano, seja pela falta de moradia ou pela precariedade da vida das favelas, ou por inserções de mensagens questionadoras na esfera pública via lambe-lambes, cartazes, performances, alteração de outdoors, colagem de adesivos, ou interferências eletrônicas. A variedade das ações reflete o hibridismo próprio destes grupos, atuando tanto em intervenções teatrais, em meios tradicionais da propaganda (como anti-propaganda), quanto com usos sofisticados do vídeo e suas possibilidades de manipulação por VJs e artistas digitais (Rosas, 2005).
Sob a avalanche de inovações tecnológicas e científicas, e o predomínio quase absoluto das ações, da fotografia e do vídeo digitais nas principais mostras de arte contemporânea do mundo, surpreendentemente para alguns ainda é possível pintar, desenhar, gravar ou esculpir. Mas o resultado desses processos considerados convencionais, sem dúvida, tem sido a recorrência às questões abordadas do presente e do futuro. Todas as atuais mostras de artes visuais e o surgimento de coletivos independentes vêm caracterizando esse momento de mudança que reforça o caráter híbrido da produção artística.
O que antes dificilmente extrapolava os limites da filosofia, agora parece expandir-se pela biologia, eletrônica, economia, política, antropologia e sociologia. O que antes parecia conceitualmente sutil, agora é absolutamente claro: a humanidade está mais consciente de seus erros e, aos poucos, tenta incrementar seus acertos. O mundo se globaliza. Paradoxalmente, a humanidade se dá conta da necessidade de convivência e respeito mútuos entre as ditas diferenças. Unidas no conjunto, mas mantidas em seus aspectos individuais, essas características intrínsecas da sociedade se fortalecem como fenômeno universal.
Torna-se supérflua qualquer categorização: escultura, desenho no espaço, instalação, ação, conceito formalizado como ficção, o que importa se é possível ser tudo isso ao mesmo tempo? Na falta de uma definição categórica, tão inerente às necessidades humanas, a saída é tentar montar, como num quebra-cabeça, as diferentes partes dessa composição: o visível terminado e o invisível que se inicia. Entre o ser e o não ser, o que importa é o que realmente é.
Parte do texto "Das artes liberais ao hibridismo: a revolução dos conceitos nas artes visuais", publicado no livro "Arte contemporânea em questão" (Ed. Univille, 2006).
Referências:
BELTING, Hans. Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais. 2001. In: Ferreira, Glória; Venâncio Filho, Paulo. (org.). Arte & Ensaios, n. 10, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes da UFRJ, 2002. p. 167-175.
BOURRIAUD, Nicolas. O que é um artista (hoje)? 2002. In: Ferreira, Glória; Venâncio Filho, Paulo. (org.). Arte & Ensaios, n. 9, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes da UFRJ, 2003. p. 76-79.
DUVE, Thierry de. When form has become attitude – and beyond. The artist and the the academy. South Hampton: University of South Hampton, 1994. In: Ferreira, Glória; Venâncio Filho, Paulo. (org.). Arte & Ensaios, n. 10, Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes da UFRJ, 2003. p. 93-105.
HAMILTON, Richard. Interview with Eduardo Paolozzi. Contemporary Sculpture, Arts Yearbook 8. Nova York: Art Digest, 1965. p. 160-163. In: Chipp, Herschel Browning. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 675 p.
ROSAS, Ricardo. Hibridismo coletivo no Brasil: transversalidade ou cooptação? 2005. Disponível em http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum. Captado na internet em 2 de setembro de 2006.
SANTAELLA, Lúcia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Editora Paulus, 2005. 72 p.
VARGAS, Herom. O enfoque do hibridismo nos estudos da música popular latino-americana. 2004. Disponível em http://www.hist.puc.cl/iaspm/rio/anais2004/HeromVargas.pdf. Captado na internet em 15 de setembro de 2006.
Charles Narloch
30/07/2007

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